Há tempo para sonhar?

 

                                                                                Sonhar é acordar-se para dentro

                                                                                                           Mario Quintana

 

 

                    Acordar às seis horas da manhã sem saber direito onde está, abrir os olhos já com o celular esbravejando por ter sido abandonado na solitária madrugada, vendo primeiramente as inutilidades recebidas, as notícias, os e-mails...

                    O restante é o de costume, café mal tomado, trânsito, compromissos inauditos, retificando, os de sempre, o retorno ao lar, as conversas nunca completadas, a televisão, o passado, o amanhã...

                    Não estamos em parcial isolamento? Sim, a rotina ficou um pouco mais enfadonha, um olhar pela janela, mas a virtualidade é virtuosa? Talvez, para nossa mente, nem tanto. Não seria importante dar maior atenção aos nossos sonhos? Claro que a pergunta não se refere aos nossos anseios, mas ao ato de sonhar mesmo, que nos acomete ao dormirmos...

                    Em 1899 (com data de 1900), Freud publica “A interpretação dos sonhos”, trazendo um novo significado ao processo recheado de símbolos, detalhes, significados que, até então, eram interpretados como profecias, viagens a outros mundos ou, simplesmente, um processo sem maior importância para a fisiologia humana. Para Freud, de maneira geral, o sonho estaria vinculado à realização de desejos de nosso inconsciente. É de se destacar também que o pai da Psicanálise sempre teve (até pela sua formação), uma preocupação biológica dos fenômenos que analisava o que, de certa forma, anteciparia os estudos atuais da neurociência.

                    É de se destacar também, os inúmeros relatos de “experiência de quase-morte”, “sonhos lúcidos”, “experiência extracorpórea” quando se está dormindo que, apesar de explicações no âmbito da ciência, talvez ainda mereçam ser mais aprofundados.

                    De acordo com Ribeiro (2019), a neurociência acabou por ignorar os pressupostos freudianos durante quase todo o século XX mas, a partir de 1989, a discussão é retomada e “Passo a passo, através de uma jornada sinuosa, toma corpo uma teoria geral do sono e dos sonhos que compatibiliza passado e futuro para explicar a função onírica como ferramenta crucial de sobrevivência no presente (p.33)”.

                    Ainda, de acordo com Ribeiro, atualmente estão evidenciadas como principais funções do sono a desintoxicação do cérebro de subprodutos moleculares indesejados,  a geração de novos neurônios, o controle dos níveis de importantes hormônios, a consolidação e reestruturação de memórias, o que, de forma alguma significa uma redução do fenômeno para o âmbito puramente biológico, uma vez que a Psicologia e, principalmente, a Psicanálise, estão aí para auxiliar no conhecimento, interpretação e apoio ao desenvolvimento humano.

                    Retomando o tema a partir da Psicanálise, é possível imaginar o quanto os sonhos são importantes para a vida humana. A vida em sociedade, os desafios constantes, os desejos, necessidades, as frustrações, os apelos midiáticos, são um campo vastíssimo que preenche o inconsciente, dada a impossibilidade de manifestar, satisfazer ou simplesmente elaborar minimamente, no âmbito consciente, todos os estímulos mencionados.

                    O sonho, portanto, acaba sendo uma forma de “driblar” o que está submerso, trazendo uma riqueza enorme, de forma simbólica, daquilo que desejamos, tememos, imaginamos querer. Ao longo do tempo, os sonhos serviram para direcionar ações de governos, de sábios, dos mistérios, das religiões, das mitologias, das artes, das ciências. Um exemplo clássico, de acordo com Fogaça (2020), é o do químico alemão Friedrich August Kekulé Von Stradnitz (1829-1896) que, em 1865, desvendou a estrutura do benzeno de um sonho, no qual ele viu uma cobra mordendo a própria cauda. Evidentemente, não foi apenas pelo sonho, uma vez que ele vinha trabalhando incessantemente no tema, mas foi um passo importante.

                    Pode-se dizer que, ao longo do tempo, diante da própria dinâmica da sociedade, pouca importância tem-se dado para os sonhos; quando muito, uma lembrança ou um sonho “muito real” pode estimular um diálogo rápido com alguém da família, do trabalho, um amigo, mas raramente há uma tentativa de aprofundar o significado dele. Normalmente a conversa termina com: O que será que significa?

                   De acordo com o site de notícias Terra.com (2010), a psicóloga e pesquisadora Deirdre Barrett afirma que o sono REM (quando os sonhos se intensificam) existe há 220 milhões de anos, quando os mamíferos evoluíram, e a evolução não “desperdiçaria” ou manteria o fenômeno até os dias de hoje, sem que houvesse uma função ou, melhor ainda, uma sobreposição de funções.

                    Diante de tudo isso, resta responder à pergunta presente no terceiro parágrafo deste texto. A resposta, deverá ou deveria ser SIM. O mundo das mídias sociais tem sido bastante cruel na atenção do que temos de mais natural, que é o nosso próprio corpo, mas nas suas diversas dimensões. A primazia do corpo perfeito e do sorriso largo permanentemente presente no Instagram, Facebook, revistas de “celebridades”, etc, etc, nada mais são que aspectos superficiais e fantasiosos que se perpetuam no imaginário do tecido social, gerando uma atenção, além de desnecessária, prejudicial ao desenvolvimento da riquíssima vivência humana.

                    Voltar a dar atenção aos sonhos, procurar, ao acordar, lembrar o que se sonhou, refletir sobre ele, aprender, se conhecer melhor, são oportunidades criadas pela própria natureza, ao longo de milhões de anos. O processo de autoconhecimento, para melhoria do bem-estar, para se tornar uma pessoa melhor, para uma vida em sociedade mais construtiva, continua sendo essencial. Caso não seja possível sozinho, o apoio profissional sempre estará presente, sendo um aspecto de grande relevância esse auxílio para desvendar os mistérios de nós mesmos...

 

Fontes:

Fogaça, J.R.V. Descoberta da Estrutura do Benzeno. Recuperado de https://brasilescola.uol.com.br/quimica/descoberta-estrutura-benzeno.htm, 2020.

Instituto Brasileiro de Psicologia Clínica. Sonhos e Representação (apostila módulo 8). Campinas, 2020.

Ribeiro, S. O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Terra.com. Cientista afirma ter desvendado função dos sonhos. Recuperado de https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/pesquisa/cientista-afirma-ter-desvendado-funcao-dos-sonhos,7f19a38790aea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html, 2010.

Comentários

  1. Excelente texto! É interessante que quando se faz o exercício de se lembrar dos sonhos todos os dias, geralmente ao acordar, eles se tornam cada vez mais nítidos, repletos de simbologias que com a prática começamos a entender. Nesse sentido, as terapias Junguianas são extremamente úteis já que trazem importantes interpretações da vida diária a partir dos sonhos. Sonhos bem analisados, sem interpretações banais -sonhar com dente, morte de parente - equivalem a uns 3O% de uma boa psicoterapia psicoterapia. Traga-nos sempre assuntos tão interessantes!

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  2. Ótimo texto, trazendo um tema de grande importância. Estar atento aos sonhos, buscar entende-los - por si só, ou com o auxílio de outras pessoas - penso que seja uma ferramenta de grande valia para o autoconhecimento, o autoaprimoramento. Grato, pelo estímulo!

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  3. Parabéns!! O texto apresenta uma coerência teórico-crítica absolutamente formidável. O grande poeta gaúcho Mário Quintana afirmou certa vez que "sonhar é acordar-se para dentro". Na dimensão do autoconhecimento os sonhos são reveladores de nossas mais profundas inclinações e dos nossos desejos mais simplórios. Por outro lado, o escritor francês Marcel Proust dizia que "se sonhar um pouco é perigoso, a solução não é sonhar menos - é sonhar mais". Daí a perfeita vinculação dos nossos sonhos com os ideais que nos impulsionam para a transformação da realidade. Maurício Lambiasi, você é simplesmente GENIAL!!!!

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  4. Concordo plenamente. O trabalho com sonhos tanto os meus quanto de meus pacientes é sempre muito rico!

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