Resistência
e desejo do analista em Jacques Lacan
Introdução
O psicanalista francês Jacques
Lacan (1901-1981), em seus incontáveis aforismos, afirma em várias passagens de
sua obra que, no processo terapêutico psicanalítico, a resistência é sempre do
analista, e que somente o seu desejo poderá romper essa resistência.
Corroborando essa afirmação
temos, por exemplo, em seus Escritos ([1966],1998), quando trata de qual seria
o lugar íntimo que a interpretação ocuparia na atualidade psicanalítica,
explicando que “é assim que a teoria traduz como a resistência é gerada na
prática. É também isso o que queremos deixar claro, quando dizemos que não há
outra resistência à análise senão a do próprio analista (p. 601).”
A princípio, pode até parecer
paradoxal tal colocação de Lacan, uma vez que, de acordo com Freud, a
resistência é do analisando que, em algum momento, reprimiu, recalcou desejos
e, em um processo analítico, traria à tona o reconhecimento desses mesmos
desejos. Inclusive, Roudinesco e Plon (1998) tratam do verbete resistência, como
“termo empregado em psicanálise para designar o conjunto das reações de um
analisando cujas manifestações, no contexto do tratamento, criam obstáculos ao
desenrolar da análise” (p. 659).
Além de afirmar que não há
outra resistência, a não ser a do analista, Lacan também ressalta que apenas o
desejo do terapeuta poderia romper essa resistência. Também parece
contraditório essa ideia, pensando que justamente seria o desejo do analisando
de se curar de determinadas neuroses que o levariam ao setting
analítico.
Em realidade, Lacan não
invalida os conceitos elaborados por Freud sobre resistência e desejo, mesmo porque,
o eminente psicanalista afirma, de acordo com Jorge e Ferreira (2005), que “Freud
não foi somente o sujeito suposto saber. Ele sabia, e nos deu esse saber em
termos que se podem dizer indestrutíveis, uma vez que, depois que foram
emitidos, suportam uma interrogação que, até o presente, jamais foi esgotada” (p.
7).
A
resistência do analista
Fink (2018), relata que,
nas décadas de 1970 e 1980 havia uma anedota que dizia: “Quantos psicólogos são
necessários para mudar uma lâmpada? Só um, mas a lâmpada precisa realmente
querer mudar!” (p. 13).
Tal narrativa, antes de ser
risível, retrata uma postura que estabelece exclusivamente ao analisando a
responsabilidade por eventuais ineficácias que possam ocorrer no processo
analítico, no caso, fruto de suas resistências.
É até justificável essa visão;
Freud ([1895], 2016), introduziu o termo resistência, pela primeira vez, no
estudo do caso Lucy R., como citado: “Logo também deixei de realizar aqueles
testes para determinar o grau de hipnose, pois, em toda uma série de casos,
isso ativava a resistência dos doentes...” (p. 158). Também, quando percebe que a analisanda possuía uma
inclinação pelo seu patrão, ou seja, estava apaixonada por ele: “ Não encontro nenhuma
resistência para elucidar a origem dessa inclinação” (p. 171).
Mijolla (2005), afirma que
“a psicanálise entende por resistência tudo o que se opõe à progressão do
trabalho analítico durante o tratamento” (p. 1627). Essa conceituação abre
espaço para a afirmação de Lacan, pois amplia a visão sobre o tema, ou seja,
extrapola o sentido único de atribuir apenas ao analisando a responsabilidade por
resistir, por apresentar oposição ao acesso à consciência de representações que
lhe sejam desagradáveis, por meio do recalque.
Desta forma, Lacan não
deixa de reconhecer a existência da resistência do analisando, pois esta já
seria uma condição inerente a ele; ou seja, é absolutamente natural que o
analisando apresente resistência e é exatamente por isso que ele procura um
analista para que possa apoiá-lo na nobre ação de trazer à consciência aquilo
que está recalcado.
Fink (2017), trata
exatamente da responsabilidade do analista na questão, quando afirma que
terapeutas
contemporâneos também tem a desagradável tendência de atribuir aos silêncios
refratários, e muitas outras dificuldades de tratamento (por exemplo, escassez
de associações, inabilidade de se lembrar de sonhos ou devaneios, falta de
pontualidade, cancelamentos, não comparecimentos, e assim por diante), resistência
intencional ao tratamento por parte do paciente, ao invés de olhar para um
panorama maior. Tais dificuldades de tratamento geralmente surgem [...] de algo
que o analista está ou não fazendo, por exemplo, se recusando a ajudar o
paciente a articular o que nunca tinha articulado antes [...] ou não se
empenhando em descobrir se a condição anterior do paciente estaria se repetindo.
(p. 220)
Esses parecem ser,
portanto, os aspectos que levaram Lacan a afirmar, conforme Fink (2017), que não
existiria outra resistência para o analista, a não ser a do próprio analista.
Fink (2017) completa dizendo que “[...] a ideia de que quando os analistas
estão propensos a concluir que o paciente está resistindo é sempre falha deles
mesmos, e não do paciente” (p.221).
Finalmente, Fink (2017)
lembra que Freud (1900/1958, p. 639), tratou certos posicionamentos do
terapeuta, em que ele classificou “como a ‘política do avestruz’, que enfia a
cabeça na areia para não ver” (p.221). Isso caracterizaria o fato de o analista
não reconhecer a própria resistência, por “estar com a cabeça enfiada na areia”.
Sendo assim o terapeuta não compreenderia que eventual interrupção do progresso
de uma análise poderia ter como causa, a resistência dele próprio.
O
desejo do analista
No que se refere ao desejo
do analista, Fink (2018), relata que, tanto Freud quanto Lacan, entendem que
não se pode confiar que o analisando apresente uma genuína “vontade de
melhorar”, pelo fato de que a procura por um terapeuta, pelo paciente, estaria
vinculada muitas vezes à situação em que o analisando já não possui “forças” até
para viver; sua libido está se esvaindo, o desejo está morrendo (p. 13).
Em sendo assim, resta ao
analista ter o desejo de que o processo psicoterápico realmente funcione. Fink
(2018) inclusive detalha que tipo de ações o analista pode realizar. Para que
um paciente prossiga na terapia, uma vez que seu desejo enfraquecido ou quase
inexistente pode levar à interrupção, é necessário muitas vezes que o terapeuta
demonstre o seu desejo de que haja continuidade no processo terapêutico, inclusive
expressando-se como, por exemplo, dizer “até amanhã, até a próxima semana,
seria interessante que ampliássemos as sessões para duas vezes por semana etc.”.
Evidentemente, a
interrupção da terapia pode ser causada por outros motivos, tais como, alguma
falha cometida pelo analista, ausência de recursos financeiros, ou mesmo
conflitos internos que surgem no processo analítico, e que o paciente não
deseja enfrentar. Por isso é fundamental que o analista esteja muito atento
para compreender a real motivação que possa levar a cessar uma terapia e
“resistir” (aí, sim), à ideia de que o problema está sempre no paciente.
Ademais, Fink (2017),
afirma que Lacan sugere que o analista não precisa sentir nada em especial pelo
paciente, mas sim deve exercer o desejo que é próprio da psicanálise, ou seja,
“o de que o paciente prossiga o trabalho analítico e que fale, associe e
interprete” (p. 101). Isso não significa que o terapeuta precise “matar” outro
desejo que eventualmente tenha; o que deve haver é uma moderação dos desejos e,
para isso, é fundamental que o analista tenha feito sua própria análise.
Conclusão
O aforismo lacaniano
apresentado poderia, a princípio, parecer paradoxal, ou mesmo de limitado
alcance prático. Em realidade, Lacan chama a atenção para dois aspectos
conceituais fundamentais à boa prática psicanalítica, com vários desdobramentos
decorrentes disso.
Atribuir a existência de resistência
somente ao analisando, pode ensejar diversos impactos, desde atrasos na
dinâmica do processo analítico, até a desistência por parte do paciente; ou
seja, situações graves pensando no que significa a procura por uma terapia.
Outros desdobramentos, são a perda financeira, perda de tempo, sofrimento
psíquico etc., o que não é nada desprezível.
Quando se trata do desejo
do analista, igualmente relevante, implica a necessidade de o terapeuta estar
em dia com sua própria análise; em reconhecer que é possível ter outros desejos
em relação ao paciente, mas jamais se esquecer que o desejo no setting analítico
é aquele próprio da psicanálise, que é o de fazer com que o paciente possa
progredir em seu processo terapêutico. As consequências disso, ou seja, da não
observância desse conceito fundamental, também pode levar o analisando a perdas
significativas ou até irreparáveis.
Isso somente retrata a
responsabilidade permanente e inalienável de um psicanalista, ou seja, a
estrita observância do tripé psicanalítico: teoria psicanalítica, análise
pessoal e supervisão. Ainda mais, é fundamental que o terapeuta se EMPENHE
verdadeira e integralmente. Sem isso, não é possível se autodenominar
psicanalista.
“Por
nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis.”
Jacques Lacan
Referências
Fink,
B. Fundamentos da técnica psicanalítica: uma abordagem lacaniana para
praticantes. São Paulo: Blucher, 2017
Fink,
B. Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
Freud,
S. Estudos sobre a histeria (1895). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Jorge,
M.A.C.; Ferreira, N.P. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
Lacan,
J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Mijolla,
A. Dicionário internacional da psicanálise: conceitos, noções, biografias,
obras, eventos, instituições. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
Nápoli,
L. A resistência é sempre do analista - Entenda o que significa isso Lucas Nápoli, 2022. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=VzW1UIvxp_4
Roudinesco,
E.; Plon, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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